Albert Camus: o estrangeiro da filosofia
- campusaraujo
- 4 de set.
- 2 min de leitura

Camus e o sol do absurdo
Existem livros que entram na gente como um espirro mal-dado. Incomodam, ardem, mas limpam o ar. O estrangeiro, do franco-argelino Albert Camus, é um desses. A primeira frase dá um soco logo de entrada: Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. E pronto, tá feito o escândalo. Não pela morte em si, mas pela frieza. A sociedade quer lágrimas, rituais, melodrama barato. Meursault, o protagonista, oferece silêncio e cigarro. Inaceitável.
Albert Camus chamou isso de absurdo: o mundo é mudo, nós é que inventamos sentidos. Meursault não inventa nada. Ele anda, come, transa, fuma, mata um homem porque o sol refletiu na lâmina da faca e depois encara a própria execução sem pedir desculpas nem misericórdia. É por isso que é condenado: não pelo crime, pela indiferença. Se tivesse chorado no enterro da mãe, talvez fosse absolvido. A justiça adora encenação.
Aqui cabe distinguir Camus de Jean-Paul Sartre. Sartre diria: Estamos condenados a ser livres, cada escolha é responsabilidade absoluta. Já Camus olha o tribunal, ri de canto e responde: Meu caro, não há sentido nenhum. Viva mesmo assim. É a diferença entre o militante engajado e o homem que toma sol na varanda. Em O estrangeiro, esse sol inclemente é mais decisivo do que qualquer tribunal: foi o calor, mais do que a raiva, que apertou o gatilho.
A filosofia do existencialismo e do absurdo não são tratados abstratos no livro, mas encarnam-se em cada gesto seco, cada frase curta. Meursault é estrangeiro não só na Argélia colonial, mas na própria condição humana: não joga o jogo social, não finge emoções, não barganha com Deus na hora da morte. Ele morre fiel à sua indiferença e é aí que Camus nos atinge.
Pois o que mais assusta não é matar um árabe sem nome, mas perceber que a vida segue sem garantias, sem manuais de instrução, sem prêmios de consolação. A morte é o fim, ponto. E no entanto, há uma serenidade estranha nisso: libertar-se da mentira de que existe um “porquê” nos dá um raro frescor.
Lembro de ter lido Camus pela primeira vez ainda moço. Sentir o mesmo calor que sufoca Meursault na praia. Hoje, idoso, continuo achando que o sol da lucidez queima, mas também ilumina. Talvez seja esse o recado: viver sem ilusões pode ser duro, mas é o único modo de estar inteiro.
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