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Carolina Maria de Jesus, mulher de palavra e papel amassado

  • campusaraujo
  • 10 de jul.
  • 2 min de leitura

Grito calado de uma mãe solo na periferia


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Ela catava papel, sim. Mas não se iluda. Não era o papelão que a interessava, e sim o papel com linhas. O branco, o da escrita. Carolina Maria de Jesus viveu e se foi com as mãos sujas de São Paulo e a cabeça limpa de ideias. Aos 62 anos, em 1977, deixou este mundo como tantas outras brasileiras pobres: na periferia, esquecida, com um histórico de humilhações e uma alma indomável.


Carolina era mãe solo, preta, pobre e escrevia. Isso já seria demais pra uma sociedade acostumada a varrer suas vozes pra debaixo do tapete, ou, melhor dizendo, pro quarto de despejo. Ela não aceitava migalhas emocionais. Recusava o vitimismo com a mesma elegância com que rejeitava maridos abusivos. "Antes só do que mal acompanhada", mas em versão literária, ácida, e real.


Criou três filhos com restos de feira e uma dignidade que não cabia no barraco. Entre eles, Vera Eunice, a única ainda viva. Imagino o que é crescer com uma mãe que escreve a própria dor em cadernos achados no lixo, e ainda tem forças pra sorrir. Carolina era literatura de urgência, escrita com a barriga vazia e os olhos cheios de lucidez.


Quarto de Despejo não foi só um livro. Foi um grito impresso. Um estouro social que obrigou a elite a olhar pras favelas, ainda que com nojo, ainda que de longe. Ela expôs, com sua caligrafia torta e impecável, o Brasil que os bem pensantes fingiam não ver. Seu sucesso causou desconforto: como ousava uma catadora de lixo virar best-seller?


Foi esquecida, claro que foi. A fama não resiste à pobreza, nem à cor da pele, nem ao gênero. Seu último livro, Diário de Bitita, saiu só depois da Senhora Derradeira a levar. Talvez porque Bitita, sua infância, fosse ainda mais indigesta que a favela adulta: menina negra no interior de Minas, enfrentando racismo antes mesmo de entender o que era isso.


Carolina não foi apenas uma escritora. Foi uma cronista brutal da exclusão, uma pensadora espontânea do cotidiano, uma mulher que soube dizer “não” ao silêncio. Sua literatura não pede licença: invade. E, cá entre nós, já passou da hora de fazer com que sua voz ecoe além das homenagens vazias.

Porque Carolina não queria piedade.


Queria ser lida. E lembrada.

 
 
 

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